Foi diante de 50 ou 60 passageiros de um trem metropolitano (boa parte de pé) que dois homens de idade, com grandes vincos no rosto, resolveram puxar uma conversa:
- Olha, tão dizendo que teu pai tá te esperando na Lapa, é melhor você ficar ligado
- Rapaz, isto aqui tem nota viu. Eu mostro se ele quiser desembrulhar o pacote.
O diálogo acima retratado envolve dois vendedores ambulantes de São Paulo que, por estarem trabalhando na clandestinidade, precisam cifrar a conversa para despistar a fiscalização (pai).
‘’Enquanto existirem grupos e classes, existirão também gírias e calão’’. Ariel Tacla, autor do Dicionário dos Marginais, justifica assim o motivo de sua obra, publicada no longínquo ano de 1981. Engenheiro e filólogo, ele aproveitou a aproximação que teve junto ao Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, do qual foi diretor, para reunir em livro uma amostra do rico jargão criado pelos detentos:
Desengoma a culatra esquerda daquele otário, que eu vou mandar ele de passage Tradução: Desabotoe o bolso traseiro da calça daquele sujeito,que eu vou lhe roubar a carteira, de passagem.
Solta essa grinfa, que dona Laura tá nas boca de carango. Tradução: Solta essa mulher que a polícia tá rondando de automóvel.
Ariel acredita que a gíria é uma espécie de caricatura do português ‘’padrão’’, criado e mantido pela elite. A fúria do preso se concentra na criação de novas palavras, expressões e significados sobre aquilo que a ele é imposto como a norma padrão da língua.
São nesses redutos, nos agrupamentos sociais à margem dos centros econômicos das grandes cidades lusófonas que a língua portuguesa respira, renasce e se expande. Mas o choque cultural com os homens de terno e gravata é inevitável. E aí que temos uma guerra, ou então uma treta: rola à vontade o preconceito cultural sobre a língua do pobre. Ele é subestimado, inferiorizado e taxado de burro e ignorante, pois ‘’menas coisas’’ está errado. ‘’É um assassinato à língua portuguesa’’, dizem eles.
Mesmo assim, os estudos lingüísticos mostram que a cultura popular sempre ganha, mas sempre precedida, é claro, de uma briga de foice. Pelo menos no Brasil, ‘’menos’’ será trocado por ‘’menas’’ (mesmo que o Word insista em grifar em vermelho) daqui há algum tempo. Mesmo com as chacotas na novela, das piadas nos humorísticos da TV e no sorriso irônico daquele colega da firma. A língua é patrimônio do povo, mesmo com todas as interferências políticas e econômicas que recaem sobre ela.
O escritor Guimarães Rosa, por exemplo, ao publicar sua mais famosa obra, ‘’Grande Sertão, Veredas’’, foi duramente combatido por alguns críticos reacionários por deturpar a língua portuguesa com termos do português utilizado nos rincões brasileiros. No entanto, o que temos hoje são estes mesmos críticos (com nomes diferentes , é verdade) colocando o escritor no mais alto altar da literatura em língua portuguesa. Nada mais tradicional no Brasil do que tratar, com tradicionalismo, a nossa flor do Lácio, inculta e bela.
Mexer no calo que já se acostumou com o sapato pode doer muito. Mas chega uma hora que é inevitável: ele terá de tirar o sapato e cheirar o xulé. Aí então ele vai ter de aprender que o odor ruim sentido pelo nariz dele pode ser um adocicado perfume francês para o resto povo. Rendido aos fatos, ele vai ter de aprender a fórmula do xulé , engarrafar o cheiro em finos frascos e mudar a noção de fedor de toda a sociedade.
A língua portuguesa passa todos os dias por este mesmo processo. Às vezes o problema não é o cheiro e sim o nariz...
e como está o seu nariz?!