"Cada um tem o que merece”. Estava na outra mesa, mas não pude deixar de ouvir a frase, que ficou ecoando na superfície dos meus pensamentos por todo o dia. Foi um dia comum, de trabalho estranho, de refeições planejadas, de amores indecisos. Hora de ir para casa, entrei no carro, liguei o rádio e a música, eu não ouvia. Ouvia apenas: “cada um tem o que merece”. Dirigi um longo caminho para casa, o trânsito estava ruim, o céu, cruel de cinza ameaçava derramar muita água e apesar de estar no caminho, não estava com vontade de ir para casa. Não, cada um tem o que merece, não posso ir para casa. Sempre me perco nos caminhos de São Paulo e seria bom se hoje isso acontecesse. Eu me perdesse. Afinal, cada um tem o que merece. Mas não me perdi. Sabia direitinho como chegar em casa. Tinha escolhido um caminho já decorado... Mas como cada um tem o que merece eu decidi que merecia ir pra onde quisesse, e não era pra casa. Virei a primeira rua que parecia sem trânsito. Se não tinha trânsito numa hora de rush daquelas ou era sem saída ou ninguém queria ir pra lá. E como cada um tem o que merece, eu queria. Rua estreita, mas logo vi que tinha saída. Escura, nem parecia estar dentro de São Paulo. Na verdade, uma rua estranha. Mas era ali que precisava estar, numa rua estranha, com paralelepípedos quebrados, luz fraca e casas pequenas. Estacionei o Abutre. E se fosse assaltada? Bem, cada um tem o que merece, então sossegada, sem medo de ser assaltada. E talvez se um assaltante chegasse, eu o beijasse, pedisse que me comesse e passasse a noite comigo. Nossa que ardida que estou, enfim... Se cada um tem o que merece talvez até o levasse para tomar um vinho. Asneira. Não fui assaltada. Liguei o carro e fui em frente, sem saber pra onde. Quando me dei conta, estava na Vinte e Três de Maio parada. É assim, quando você menos espera, está engarrafada de novo. Milhares de luzes vermelhas à sua frente, todos indo para o mesmo caminho que você. Mas talvez naquela hora ficar parada no trânsito no sentido inverso ao da minha casa fosse bom pra mim, me daria tempo para pensar em onde ir. Não iria para casa. Que me esperasse, cada um tem o que merece. O rádio continuava repetitivo, os carros ao lado, todos com janelas fechadas e provavelmente blindados. São Paulo tem muito medo. Nem sei mais se o medo é das pessoas ou se cristalizou tanto que virou o medo da cidade. Conhece uma cidade que tem medo? São Paulo em si, enquanto cidade tem medo. Mas como naquela noite eu tinha certeza de que cada um tem o que merece, eu não tinha medo. Faltavam-me idéias de pra onde ir. Não queria ligar pra ninguém, convidar ninguém para nada. Queria ir sozinha pra viagem que só eu mereço fazer. Que seja merecimento ou punição: cada um tem o seu e cada um sabe-se seu. Enquanto o trânsito estava parado resolvo roer o esmalte que estava nas minhas unhas, adoroooo cor feita de cor, estava usando mentirinha, fico bem de esmalte escuro. Essa semana decidi passar roxo. Queria vibrar uma cor nova, queria irradiar alguma novidade. O roxo não ajudou, então aproveitei o nada fazer para roer a cor das unhas, roia e cuspia, uma delícia, mas sei ser um espetáculo nojento para quem olha. Nesse cuspir de unhas foi me dando vontade de chorar, aquele trânsito que parecia infinito estava me dando claustrofobia. Com certeza não só em mim. Como disse, São Paulo tem medo e São Paulo sofre. A gastronomia é maravilhosa, as opções e cultura infinitas, de compras, de lazer, tudo de primeiro mundo. Mas São Paulo tem medo e São Paulo sofre, e muito. Mas como disseram hoje de manha no Frans Café da Paulista e eu ouvi de "enxerida que sou": cada um tem o que merece. Consegui vencer o trânsito com paciência espartana. Fui brava, corajosa, respirei fundo, abri as janelas sem medo e tomei ar pra mim. Ar quente e com medo, mas enchi os pulmões para decidir onde iria. Decidido: ouvi dizer que o Ibirapuera tem passeios noturnos. Um pouco de natureza não me faria nada mal. Republica do Líbano e lá estava eu. Estacionei o carro e como ainda eram 7 e pouco da noite, vi muita gente caminhando, correndo, buscando a parte saudável do dia. Desci com medo. Agora sim estava com medo. Tinha decidido onde iria e cada um tem o que merece. Entrei no parque e comprei uma pipoca que não comi. Senti nojo e joguei na primeira lixeira que vi pela frente. Andei, andei, andei, quase uma hora, quase até minhas pernas doerem de andar. Estou fora de forma, triste lembrar. Me exercitando de menos. Mas andar estava bom. Encontraria alguém ou alguma coisa que mereço e para ter certeza de que isso aconteceria deixei o celular no carro. Nada me atrapalharia na minha busca pelo que mereço. Sentei num banco. Fui relaxando, relaxando, coloquei a bolsa ao lado e me deitei. Sim, o que tem demais deitar num banco do Ibirapuera? Deitei e peguei no sono. Acredita: cada um pega no sono onde merece. Eu peguei no sono dentro do parque do Ibirapuera. Sono pesado e sonhei. Não, não vou contar o sonho. Não foi tão legal assim, cada um tem o sonho que merece.
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