Matar...
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Meu amor. Quando no relógio baterem silenciosas as 24 horas, vou-te chamar. Espero que venhas logo, não te demores porque o tempo em que penso no não te ter depois desencoraja-me e faz-me recuar. E não tenho mais tempo para recuos. A vida segue em frente, e de tanto te querer comigo deixei de saber olhar para o caminho onde sigo e passo os dias a olhar o céu... Passo as noites a fugir da lua, e tudo o que existe para além disso não me interessa. Por isso, vou ter de te matar, meu anjo... meu amor.
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Vou afiar a borboleta que desenhei hoje e é com ela que te arranco da vida. Da minha vida. Espero que venhas vendado para não me veres chorar. Espero que tragas uma venda a mais e que me tapes os olhos com ela para que eu não tenha de te ver partir. Não tragas os teus lábios, peço-te. São sulcos de magia onde mergulho de cada vez que pestanejo...sei que acabo por cegar se tiver de ler neles a tua despedida, você dirá: – “até sempre, princesa...”. E não tragas as tuas mãos, nem os teus cabelos meio ondulados, de menino querubim... a tua barba rala, mal feita, que me arranha o queixo e brinca ás cócegas até me tocar o umbigo... Não a tragas, meu amor.
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Deixa esquecido o teu andar desajeitado e vem a voar. Não te quero ver tropeçar outra vez. Sei que se acontecer, vou correr até ti, tentar amparar-te e vou acabar por cair contigo...e não mais me levanto... Não mais te mato. Não tragas também a tua pele de linho, nem a tua respiração, nem o ritmo sinfónico da tua pulsação. Não tragas nada e vem depressa. A lâmina da arma que tenho em punho já está afiada. Pouso-a em cima da mesa onde jantámos ontem e espero por ti. Está frio hoje, mas o sol já avermelhado não desiste de aquecer o mar. Agora, os dois devem estar de mãos entrelaçadas. Daqui não os vejo, mas ouço o cântico do divino que existe em horas como esta. Desligo o relógio. Desligo-me do relógio que tenho dentro de mim e que bombeia o sangue que me torna diferente de ti. Eu saberei quando a meia noite chega, não quero a tortura de ver o tempo decrescente a cada segundo que passa...outro... e outro... tic.tac.tic.tac... Morte lenta, a minha. Contigo vai ser diferente. Quando chegares, vou-te embrulhar nos meus braços e vou derreter os teus dedos nas minhas mãos. Mordo-te o lóbulo da orelha esquerda e digo-te em sussuro que te amo. Depois, conduzo-te de olhos vendados (eu e tu, como combinado) até à mesa de pedra. Pego na borboleta e rasgo-te a camisa lentamente... Gosto de ouvir o tecido mutilado. Passeio a lâmina pelas tuas costas, e quando não mais suportar a tortura, atiro a alma ao chão e rasgo-te o peito.
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Sei que vai trovejar, sei que o mar vai trepar areia e corroer as ruas. Sei que vou morrer contigo e que o ácido das minhas lágrimas vai queimar o rosto que vês e não mais me reconhecerão. Sei que depois desta noite não vai existir o amanhecer, a alvorada será só o prolongamento iluminado de umas trevas que escolhi. Mas vou ter de te matar, meu amor. Já não suporto ouvir o mundo inteiro a apontar a minha esquizofrenia, não quero que me voltem a falar de sonhos, que me peçam para acordar. Não conseguem entender que é possível viver no sonho e passar de vez em quando pelo chão, que o que não existe não é necessariamente ilusão! Como tu, amor, que foste inventado por mim. Eles não entendem que também respiras e também sorris e também choras. E as tuas pulsações, as tuas lágrimas, os teus lamentos são tão mais reais que os deles. Tu és tão mais realidade em ti do que eles são neles... És mais importante que qualquer pretexto, que qualquer contexto. És gaivota em dia de neblina...que não é pintora da cidade mas é capaz de fazer do Porto obra de arte. Eu tive de te inventar para te tornar real, porque sei que é mais fácil criar-te de dentro para fora de mim a encontrar toda a tua perfeição em alguém. “Ninguém é perfeito...” – mentira. Tu és, (Menti de novo!). É por isso que te mato. Sei que me entendes porque és tão imperfeito o suficiente para isso, porque a tua casa é o meu corpo, porque as tuas frases são as minhas palavras e o nosso mundo é a tua razão. Sei que me ouves porque te conto segredos enquanto durmo, e sei que a manhã é chuvosa quando chorámos a sonhar. Vou ficar sozinha. Esta noite nem vou dormir para não saber o que é acordar sem ti. Vou vaguear e vou encher a casa toda com velas de todas as cores (dizias que a tua cor favorita era o arco-iris – esta noite quero o silêncio do arco-iris, o segredo dos potes de ouro podes levar contigo).
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Amanhã recomeço, vou deixar de ter razões para olhar o céu, ele vai passar a ser um grande cobertor azul, e começo a traçar vectores de conduta hipodâmicamente pré-definidos. Deixo as ruelas românticas e os lampiões perdidos, esqueço a minha casa e deixo trovejar. Mato-te, e mato-me a mim contigo. Sobra o meu corpo, que vai ser finalmente parte do mundo dos outros. E ele vai olhar em frente, pode ser que tu faças o mesmo e deixes um corpo também esquecido por aí, pode ser que eles se amem...
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Chegaste.
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